7.12.04

Branqueou o buraco do velho Hipólito!...

- Corre, Marieta!...Recolhe a roupa que o morro já tá branquinho...
A negra corria desajeitada balançando a bunda grande.
De repente um raio fantástico cruza o céu, num flash gigante azulando o branco dos olhos saltados da lavadeira. Marieta se benze ainda mais arregalada:
-Credo!... Santa Bárbara!... Nossa Senhora!...

Eu estava assentado sob uma folha gigante de abóbora, observando um carreiro de formigas que seguia pelos baraços da planta. Imaginei que as formigas sabiam da chuva e apressavam-se a caminho do formigueiro.

Atrás de mim, uma trilha de tijolos gastos e esverdeados por musgos cortava o quintal rumando descuidada até o meio do terreno, onde uma cerca fixada ao pé-de-pera, dividia o quintal. Marieta me viu enquanto passava com as roupas amontoadas nos ombros. Pisou em um tijolo solto e um de seus chinelos caiu do pé.
- Anda, Lelé-da-Cuca!... vai pa drento minino... Não vê que vai chovê? E lá foi-se a negra sem um dos pés da alpargata de brim marrom e solado de corda.

Olhei para o morro esbranquiçado pelas nuvens e calculei o tempo para a chuva chegar. Este era um exercício contínuo e que permitia aperfeiçoar cada vez mais o método de prever a hora exata em que os pingos começariam a bater no chão. Na verdade, a chuva era bem previsível, e dava sinais evidentes antes da chegada.

As formigas ainda estavam nos talos de abóbora, o que significava que havia um tempo antes da chuva. Continuei sentado no chão até que senti um pingo gelado bem na nuca. Logo outro pingo enorme estalou sobre a folha da abóbora. Olhei para baixo e vi que as formigas corriam desesperadas. Não terão mais tempo... Esses bichos nunca vão aprender... E gritei com as formigas:
- OLHA A CHUVA!...

Peguei o chinelo da Marieta e disparei em direção à casa sentindo prazer em receber alguns pingos no rosto. Depois, abrigado no canto do fogão de lenha, posicionei-me de joelhos na cadeirinha encostada à janela e fiquei observando a chuva. O vôo irresponsável das andorinhas deliciando-se com piruetas e rasantes sobre o Posto do Seu Ghizoni.... Os postes e os fios elétricos carregados de pérolas líquidas que andavam, esbarravam umas nas outras e, quando se fundiam, despencavam pesadas para o chão... O cheiro de chuva no ar, lavando os quintais e ruas empoeiradas...

Sempre gostei da chuva, pela beleza ímpar das gotículas transparentes pipocando nas vidraças e depois escorrendo anônimas para as torrentes, fundindo-se nos regatos e rios. E depois, em ciclo sem fim voltando a cair sobre as folhas das árvores, rolando no fluxo das corredeiras, no rumor das cascatas, ou delicadamente umedecendo as raízes de todas as plantas: não importa se produzem espinhos ou flores magníficas...

Que pena que não posso acompanhar as gotas e rolar pelas folhas das árvores escorrendo pela relva sem importar-me com o destino final... Quem sabe a chuva me ensine a lição da utilidade silenciosa e a certeza da eternidade dos ciclos?
Por ora, observo a chuva. E gosto dela...
PLI... PLI... PLIC...

16.9.04

Saudade


Cansei de esperar
Que a hora pastosa
Tornasse amanhã
Meu hoje-passado.

Deixei sem viola
A mão infinita
De ocos momentos
Sem risos rasgados.

Agora me resta,
Longevo e criança,
A saudade (quem diria!)
Ferida do tempo
Que esqueci de viver.

15.9.04

As asas de Lula



Elas não brotaram
Do teu pensamento.
Não foi teu coração generoso
Que as colocou.
Não foi a mão
Engenhosa de Santos-Dumont
Que forjou tuas asas...
Milhões de pessoas
De roupas rasgadas
As projetaram.
E multidões abandonadas
Doaram seus ossos para a estrutura.
E mágicos sonhadores
Tiveram suas entranhas dissecadas
Para doar seu sangue, nervos e músculos.
Velhos fracos e doentes
As cravaram em tuas costelas
E crianças famintas
As cobriram de sonho, (Vida...)
Forrando-as delicadamente...
Com plumas de amor que,
Finalmente,
Permitem teu vôo.

11.2.04

Tio Arcido visita o céu


Tio Arcido visita o céu

José Nunes
O longo inverno de Urubici parecia não ter fim. A primavera não chegava. Chico, chegou em casa apavorado. Perguntado o que tinha, ele respondia com meias palavras:
- Eu vi... Eu vi... Pássaros de todas as cores...
- Que pássaros menino? - retrucou a mãe.
- Pássaros enormes levavam Tio Arcido pelos ares como se fosse um viajante. E entre os pássaros ele sorria e abanava para a cidade... Ele foi subindo...
- Você está ficando maluco menino.
- Não, mãe, eu juro que vi. Ele estava aqui, do lado da grota, quando eu vi milhares de pássaros levando o Tio Arcido pelos ares. De repente, vi que eles iam em direção ao céu e sumiram por entre as nuvens.
- Mas, por que ele iria, meu filho?
- Não sei mãe, só sei que ele foi.
- Chico, você não estava dormindo, não?
- Não mãe, juro que vi, com esses olhos que a terra há de comer.
- Bem, e agora? O que vamos fazer?
- Vou ficar esperando por ele, para ver se ele volta.
- Claro que voltará meu filho.
- Não sei não mãe... - disse o menino quase chorando.
Chico ficou o dia inteiro de olhos cravados do céu. De repente, pelo meio da tarde, um grande enxame de abelhas veio zumbindo do céu. Tio Arcido estava no meio delas, sorrindo e abanando para o povo. Foi trazido e colocado no chão, são e salvo. Nesse momento, um delicioso perfume de flores e de mel encheu os ares de Urubici. O céu ficou mais azul do que nunca. As flores espoucavam como pipocas. Todos correram até ele, que, confuso, disse, com um sotaque bem barriga-verde:
- Nossa, acho que estou sonhando... Que lindo é Urubici!
E todos responderam:
- É verdade, nós também, Tio Arcido, parece que estamos sonhando.
- Onde o senhor foi, Tio Arcido?
- A primavera estava demorando e eu fui buscá-la...
Uma grande salva de palmas se ouviu em toda serra, cantos e vivas ecoaram por todo lado.