1.5.09

A passagem



Passa vida, passa sob a nossa janela.
Em tumultuado tropel de bois e poesia,
Em cores tão vivas, tão belas
Que mesclam o esboço, o pincel e a tela.

Passa vida, passa.
E sob nossos olhos define:
Imago et lux,
Pessoas e coisas em esplêndida vitrine.

Que importa o espetáculo dos bois enfurecidos
Se nossa alma é tomada por clarividente destino?

Que importa o ruído dos cascos
Se a dimensão infinita da vida
Tornou ancião um menino?

Para vida! Para!...
Que seja eterna e amena
E que depois de tudo
Ainda dure infinito tempo.
E que além intenção, seja plena.


17.4.09

A passagem




O Rio Urubici rumorejava feliz na altura da ponte de madeira em que os caminhões da Florestal bufando vapores sob o capô e soltando fumaça pelos aros dos rodados ferventes davam sinais de que fariam a parada salvadora no Posto do Ghizoni.

Também desciam o Avencal as tropas de gado chucro e feroz. O gado comportava-se bem até a ponte. Os peões que conduziam o gado sabiam que, durante a descida do morro, na estrada ladeada por campos e pinheirais, o gado experimentava um certo conforto de um ambiente que lhe era familiar. Ao chegar na cidade porém, os bovinos se espantavam com o burburinho das crianças do grupo escolar e passavam já assustados no Bar da Praça, onde alguns bebuns convictos saudavam os vaqueiros com assobios e gritos de “eeeira boi…”. A adrenalina do gado subia a níveis incontroláveis.

Mas o pior os peões já sabiam. Na altura do armazém do seu Max, o gado tinha que descrever uma curva à esquerda e como alguns bois, já esbaforidos, apressassem seu passo, tendiam a seguir em linha reta na direção da casa do morro.

O velho Max aproximava-se da porta do armazém para apreciar a boiada. Com olhar divertido percebia a exaltação dos bois e chamava a esposa para assistir o momento em que se colocaria à prova a perícia dos vaqueiros.
-Lídia, corre pra ver o boi brabo. – Dona Lídia aproximava-se da porta do armazém, esticando o pescoço a guardar-se para o caso de algum boi atrevido buscar abrigo dentro da venda.
-Credo! Max, quem é aquele moço do cavalo troteador? É o Lessinho, filho do véio Leco? Credo Max, eu fazia gosto de que ele namorasse a Marli, mas parece que ele gosta é da filha do Abilo

Seu Max com um sorriso franco sorvia as palavras da esposa com satisfação. Sempre era assim. Ele falava baixinho e desafiava a mulher com pitadas de bom humor, para que a esposa se pusesse a expressar suas angústias, alegrias e opiniões. Max não dizia mais nada. Apenas continuava a sorrir. Aquele sorriso perfeito. Silencioso e feliz. Mesmo agora, quando alguns bois subiam na calçada da venda fazendo com que dona Lídia se refugiasse atrás do balcão, seu Max continuava sorrindo, confiante no “braço” dos cavaleiros que pastoreavam a boiada selvagem.

O cavalo troteador passou rente à porta do armazém. O cavaleiro aproximou o arreador à aba do chapéu para cumprimentar:
-Buenas seu Max! – E lá se foi o Lessi troteando por entre as guampas afiadas buscando posicionar-se à entrada da rua para evitar que o gado seguisse em frente.
-EEEEEIIIIRA!


Não obstante o esforço dos vaqueiros, a boiada se dividiu. Uns seguiram no rumo da casa do morro, espalharam-se pela Santa Cruz, em frente à igreja. Outros desceram apressados pelo canto da calha da roda d’água e caíam no Riacho escorregando nas pedras lisas de limo. Algumas reses bebiam calmamente a água do cocho de madeira das lavadeiras. Outros se empapuçavam com as folhagens da casa da dona Carmelina.

As crianças que desciam da igreja ficaram em meio ao estouro da boiada. A gritaria espalhou-se pela praça e as lavadeiras largaram suas trouxas de roupa buscando refúgio na rodoviária, no hotel da dona Judite, na venda do Bastiãozinho, ou na loja do seu Abílio.

Dentro do lageano, Pêta, o motorista, gritava divertido. No meio do campinho, atrás da verdureira, Geni, o Mariposa, distraíra-se descascando um abacaxi e não percebeu a boiada chegando. Cercado pelos bois, o Mariposa os toureava como podia. Os chifres passavam rente a sua bunda saliente e o Pêta, da janela do ônibus, gargalhava e finava-se de rir:
-Sai Geni… Olha o outro aí atrás… Ah Ah Ah! Cagou-se Mariposa!

Seu Abílio correu para proteger os cristais da loja abaixando a porta de ferro. Dona Elvira gritava pelas crianças que haviam ficado no paiol.
-Fiquem aí. Não saiam agora.


Um boi enfurecido adentrou pelo quintal, passou bufando pela cerca-viva e investiu contra algumas peças de roupa que secavam no varal.
O cavalo do Lessi saltou o portãozinho de madeira e o filho do véio Leco armou uma laçada certeira nas guampas do boi que se atrevera pelo quintal da casa do seu Abílio.

Orgulhoso, Lessi conduzia a rês atada pelos chifres. O cavalo passou pela janela da casa. Lessi recolheu as rédeas numa manobra elegante. Levou a mão ao chapéu cumprimentando as duas moças bonitas que estavam à janela. A mais nova falou à outra:
- Olhe Alda! É esse. Veja como ele é bonito.

11.4.09

Estórias de babões, peidões e mentirosos


         Sinha Maria aproximou-se do fogão de lenha em que ardiam as brasas incandescentes avermelhando-lhe a chapa de ferro escovada a capricho pelas mãos de Dona Elvira. Num gesto mecânico, Sinha Maria retesou os músculos dos braços estendendo as mãos calejadas e os dedos tortos sobre a chapa para apanhar o calor do fogo. Esfregou as mãos com vigor e satisfação.
 - Dona Ervíria, eu tava lá no lado das muié que peidaro na igreja de já hoje na Missa.
 - Credo, Sinha Maria - retrucou Dona Elvira enquanto repassava à negra uma xícara de café fumegante - Nem fale nisso. Que pecado. Como alguém iria... fazer uma coisa dessas dentro da igreja?
 - Mas, aconteceu Dona Ervíria. O padre Ludovico, oiô pro nosso lado por cima dos ócro. Eu nem se mexi. Se ele pensa que fui eu, tá inganado. Mas ele oiô pra mim...
 - Que coisa, Sinha Maria eu morria de vergonha se o Padre olhasse pra mim desse jeito.

        Sinha Maria baixou os olhos. Naquele momento, percebeu que estava em uma situação bastante constrangedora. Teria o Padre desconfiado dela? Como poderia defender-se.  Pensou em conversar com o Padre e confessar sua inocência, mas percebeu o quanto isso seria difícil. O Padre Ludovico falava tudo com um sotaque alemão carregado. Também não entendia quase ninguém da cidade. Desde que viera da Alemanha, o povo esperava que, aos poucos, o Padre fosse aprendendo a falar português. Mas o tempo passara e as coisas pareciam não melhorar. Melhor não tentar conversar com o Padre alemão... Mas havia outra coisa que incomodava Sinha Maria. Assentada sobre uma pilha de lenha ao lado do fogão, ela molhava o pão que Dona Elvira trouxera na xícara de café e entornava todo o líquido, como era seu costume. Fazia essas visitas à casa do Seu Abílio Nunes e de sua esposa Elvira aos domingos, após a missa. Fazia um jejum definido pelo costume religioso, para poder comungar e chegava à casa dos Nunes com uma fome feroz.

       Acompanhava-a sempre o filho Antonio, um sujeito tosco e mal-cheiroso, mas misterioso e cativante. Por paradoxo, Antonio ostentava uma simpatia enorme que lhe escondia os defeitos. Antonio Tatu, como era conhecido na cidade, fazia trabalhos domésticos, capinava, cortava lenha e carregava pedras. Antonio, tomando café em pé, do outro lado do fogão não demonstrava ouvir o diálogo das mulheres. Nisto, o Antonio Tatu era finório. Escutava o que queria e dirigia o olhar para longe quando não gostava do assunto, ou sabia que não lhe era próprio. Metido em um paletó com contornos debruados, herdado de alguma das tantas vítimas da guerra na Alemanha, o Tatu continuava absorto em seus pensamentos mastigando o pão que lhe trouxera a dona da casa, e que igualmente embebia no café antes de levar à boca fazendo uma lambança enorme. O café escorria-lhe pela barba e pingava no fogão que respondia chiando sua chapa quente e fazendo as gotas percorrerem um eito pulando sobre o ferro lixado até se evaporarem por completo.

        Quando Dona Elvira se afastou por um momento, Sinha Maria dirigiu-se ao filho com alguma angústia:
 - O Padre achou que fui eu... A Dona Ervíria também desconfiô de mim...
Antonio Tatu não esboçou reação. Continuou sorvendo o pão molhado de café. Sinha Maria agora comia alguns pinhões que estavam assando na chapa. Franzia a testa e tornava incontável sua sequência de rugas. Nem tem com quem falar pra dizer que não foi ela. Nem com seu filho, nem com o padre, nem com Dona Elvira. Falar num assunto desses com o Seu Abílio seria a pior viagem. O dono da casa era austero e tinha uma fama de corretíssimo em tudo. O jeito é ficar calada e deixar que as desconfianças recaiam mesmo sobre ela mesma. Indefesa por sua prória ignorância e passível de ser acusada por sua imagem de pouco asseio e educação tosca, Sinha Maria chegou à conclusão de que nada alteraria sua existência, nem haveria acusação que pudesse denegrir mais sua imagem.
- Fui eu mesma que peidei na igreja... - Sussurrou mordendo uma casca de pinhão. - Antonio Tatu, ligou seu ouvido seletivo e levantou os olhos para ela desaprovando a autoria de um ato tão nefando e irreverente.

        Neste momento chegam as crianças da casa. Após a missa tiveram uma aula de catequese com Dona Pepita e agora chegavam barulhentas e reclamando do frio. As crianças se acercaram do fogão de lenha e cumprimentaram Sinha Maria e Antônio (ninguém se referia diretamente a ele por seu apelido de Tatu). Apanharam alguns pinhões e sairam tagarelando. Permaneceu junto ao fogão apenas a menina Salete. Olhinhos espertos, fita de laço no cabelo e boca gulosa mordiscando os pinhões amassados com uma acha de lenha, pelo Tatu.
 - A senhora viu, Sinha Maria?
 - O quê?
 - O peido na igreja?
 - É... Nossa Senhora tenha pena de mim. - Choramingou Sinha Maria. E a Salete continuou animada:
 - O peido foi alto. Fez tchuuunc!
 - Pois é Saletinha. Mas não fedeu né?
 - Não Sinha Maria. Foi só o barulho. Todo mundo ficou olhando pra ver de onde tinha saído. - E Sinha Maria conformada:
 - Pois é... o padre me oiô... - E a Salete num largo sorriso:
 - Quem soltou esse fui eu. Mas não conta pro pai tá?